Atriz brasiliense realiza sonho adiado e celebra envelhecer com arte

"É preciso aliviar o peso que se dá para a velhice, para poder falar de boca cheia: eu sou velha." No 11º episódio do podEnvelhecer, a atriz, poeta e escritora Márcia Amaral, fala como, aos 64 anos, exerce sua arte

Márcia Amaral sonhava em fazer teatro desde a adolescência, mas o pai achava que aquele não era um ofício adequado para “moças de família”. A mineira casou-se, mudou-se para Brasília, teve filhos, precisou lidar com o diagnóstico de bipolaridade, e o desejo foi ficando de lado. Quando subiu ao palco pela primeira vez, teve a certeza de que aquele era o seu lugar. 

Hoje, aos 64 anos, a atriz, poeta e escritora exerce com orgulho e autoconfiança a sua arte e se sente “uma criança na terceira idade”. No 11º episódio do podcast podEnvelhecer, Márcia falou às jornalistas Sibele Negromonte e Mila Ferreira sobre etarismo, aceitar as rugas e os quilos a mais e fazer as pazes com a velhice.

Em alguns momento, emociona-se, quando fala do companheiro de vida que morreu há pouco tempo ou declama o poema que escreveu aos 40 anos e que, acredita, é uma premonição do que vive hoje. A seguir, confira os principais trechos do bate-papo.

Paixão pela arte

“Eu quis fazer teatro na minha adolescência, mas meu pai não deixou, porque, naquele tempo, o preconceito era muito forte. Eu me formei em artes plásticas e vim para Brasília acompanhar meu marido. Eu já trabalhava como professora em Belo Horizonte e segui como professora aqui. Minha veia artística sempre foi muito abafada, porque não dei continuidade à arte que fazia na UFMG, que era gravura em metal. Logo engravidei, e a vida foi seguindo esse caminho, de mãe e dona de casa contemporânea, que sai para trabalhar. Por volta dos 35, eu ingressei no Dulcina de Moraes para fazer licenciatura em artes plásticas porque passou a ser exigida para dar aula. E lá, no básico, a gente tinha as disciplinas de teatro, música e artes plásticas. E quando eu pisei no palco, nossa, eu fiquei emocionada. Eu tive certeza de que era isso que eu queria”. 

Sonho adiado

“Meus filhos ainda eram crianças, meu marido trabalhava no fim de semana, à noite, como jornalista, e eu não tive essa coragem (de se dedicar integralmente ao teatro). E aí, eu adiei, adiei, adiei, adiei. Quando foi por volta dos 40, eu adoeci. Tive uma depressão que durou seis meses e, em seguida, fui diagnosticada com o transtorno bipolar. Quando veio a primeira crise de euforia, a minha vida começou a passar por uma grande revolução. Houve um empenho familiar. Meu marido foi muito companheiro, para poder me ajudar a vivenciar essa primeira fase de diagnóstico e tratamento. Então, primeiro veio a poesia. Eu escrevia compulsivamente, e isso fez uma revolução positiva. Eu diria, inclusive, que trouxe à tona a causa desses demônios que estavam se tornando aqueles dons que eu aprisionei. Não consegui mais voltar a dar aula”.

Convivência com jovens

“Uma ex-aluna muito querida, a Alexandra Medeiros, me ligou e disse: “Dona Márcia, eu e o Diogo estamos indo fazer uma oficina de teatro, hoje à noite, e lembrei de você. Quer ir com a gente?”. E eu fui, fiz a oficina com eles, fui colega dos meus alunos. E essa convivência com os jovens permaneceu. Eu acho que isso me ajudou demais, porque quando eu, depois de ter vivido todo esse processo do transtorno e ter achado um equilíbrio funcional, comecei a fazer teatro com Adriana Lodi, no Espaço Cultural Renato Russo. Tinha gente de 17, de 27, e eu tinha 47 anos, começando uma nova vida”.

Etarismo

“O etarismo está presente em todas as profissões e em todas as idades. Ontem, eu estive com uma moça, de 26 anos, vendendo uma roupa, em uma loja. Começamos a conversa e chegamos à questão da idade. Eu falei: eu estou feliz com a minha idade, estou acima do peso, mas estou feliz com esse corpo, com a cara que tenho, eu me olho no espelho e gosto. E ela falou: eu não gosto disso aqui em mim, eu detesto isso aqui em mim. Ela falou da ruga de expressão, do bigode chinês… Vinte e seis anos e bem preocupada. A vida é boa em qualquer idade. E, se não está, vamos buscar (a felicidade). 

Primeira protagonista em um filme, gravada aos 61 anos, Rosa está cansada de viver só, está querendo viver um romance, ter um par para dançar forró. E aí a amiga dela a convence a entrar em um aplicativo de namoro. Por fim, ela acaba topando e, na hora de colocar a foto, não tem coragem de colocar a foto atual. Aí ela vai numa caixa de fotos antigas, e pega uma dela nova e coloca lá. E, aí, num instantinho, dá match. E ela escolhe o Lírio, o mestre de obras por quem se encanta e que, por sua vez, também colocou uma foto dele novo. E quando eles se encontram, é muito lindo, porque é um encontro verdadeiro, eles sentem um alívio por não precisar mais mentir — eu sou essa aqui, não aquela da foto. Enfim, mostra com uma beleza, uma leveza a velhice como ela é”. 

Memória

“Parei de brigar com a minha memória. Eu me vi muitas vezes falando, ‘ah, a minha memória está péssima’. Parei, não está péssima não. Minha memória é ótima. Quando eu acordo todos os dias, eu sei meu nome, minha idade, onde eu moro, quem eu sou e o que eu vou fazer nesse dia. Eu vou ficar reclamando do quê? Reclamando da minha memória? Ela é linda. E, se eu começar a ficar me queixando muito dela, ela pode ficar brava comigo e falar, ‘ó, então tá, tchau'”. 

Solidão

“Envelhecer é lidar com perdas. Essa é a idade em que está todo mundo morrendo. São as perdas, e faz parte da vida. Tem a perda da beleza, aquela beleza da juventude; tem a perda, às vezes, dos cabelos. É uma fase de perdas. E, para vivenciar isso de forma legal, a gente precisa abraçar a velhice, ter a velhice como parceira, como aliada e não como inimiga. É preciso aliviar o peso que se dá para a velhice, para poder falar de boca cheia: eu sou velha”.

Poesia

Eu tinha feito o meu primeiro livro, aos 40 anos, e resolvi publicar — publiquei com 42. Poemas que eu escrevi quando era adolescente, desde os 13 anos. Aos 40, escrevia compulsivamente. O livro foi chamado Menina, Mulher, Poemas. Achava que faltava um poema para fechar o livro, aí, escrevi esse poema que eu vou declamar. Foi premonitório, porque eu falava de mim hoje:

Te ser

Te vejo pela janela

Sentada no seu tear

Serena, cantarolando

O tato a “tatetear”

A vista já bem cansada

Os olhos sempre a mirar

Esse ponto no infinito

Onde os tempos vão chegar.

Tanto passado…

Futuro?

Porto seguro de se aportar.

As fiadas de algodão

Brincando na tecelagem

Unindo todos os pontos

Desta infinita viagem

Não sei quem são seus amigos

Quem ainda te acompanha

Mas te vejo bem consigo.

Tecendo…

Tecendo…

Te sendo…

Sendo só você mulher.

Por Por Brasília

Fonte Correio Braziliense

Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press