Dezessete anos após a lei seca entrar em vigor, a combinação álcool e volante faz vítimas recorrentes na cidade e nas rodovias que cortam o Distrito Federal. Mesmo com o aumento do rigor na punição, um número considerável de motoristas ignoram a vida e a lei (leia Memória). Na capital do país, a quantidade de condutores que tiveram a carteira de habilitação suspensa por dirigir sob influência de álcool triplicou no ano passado, atingindo a marca de 7.954 casos, aumento de 207% em relação a 2023, quando 2.592 foram suspensas.
Em Brasília, a vítima mais recente é Victor de Aquino Costa, de apenas 18 anos. Ele foi atropelado e morto por um motorista que dirigia alcoolizado, enquanto pedalava com um amigo no acostamento da BR-020, em Planaltina. Praticamente uma semana após a tragédia, a tia do jovem, Kátia de Aquino, 51, diz que a família está “sem chão e sem rumo”. Segundo ela, Victor estava começando a vida.
“Estamos todos dilacerados, angustiados e revoltados. Foi uma perda muito grande. O Victor foi uma superação de vida e, infelizmente, aconteceu essa tragédia”, lamenta. Kátia afirma que a lei não ajuda. “Esse rapaz que matou meu sobrinho saiu da prisão por R$ 1 mil. É isso que vale a vida do Victor? Como será que esse cidadão ficaria se fosse com a família dele? Não tenho nem palavras para descrever. A Justiça não pune”, reclama.
De acordo com ela, as leis têm que ser mais severas para quem bebe e dirige, combinação trágica que também assombrou a família antes da morte de Victor. “Carro é uma arma. Eu mesma sofri por causa da embriaguez ao volante. Há dois anos, fui atropelada por um carro, quando estava de moto, e o condutor estava bêbado. Estou sem conseguir andar direito por causa da batida”, recorda.
Impunidade
De acordo com o Detran-DF, no ano passado, foram 20.812 autuações por dirigir sob a influência de álcool — uma média de 57 por dia. Ao Correio, o diretor de Policiamento e Fiscalização de Trânsito da autarquia, Glauber Peixoto, comenta que a insistência em beber e dirigir, por parte de alguns motoristas, pode estar ligada ao fato de que esse tipo de condutor tenha uma sensação de impunidade. “Por achar que, por estar perto de casa, ele não vai ser abordado. Mas isso não é verdade, uma hora vai acontecer e é melhor isso do que ocasionar um acidente grave, que pode acabar tirando a vida de outra pessoa”, alerta.
Segundo ele, o pensamento do condutor tem que estar além do valor da multa e de uma possível suspensão da CNH. “Ele tem que colocar em primeiro lugar a segurança, tanto dele quanto dos passageiros do veículo, além dos outros usuários do trânsito. Quando abordamos uma pessoa embriagada ao volante, tiramos da rua alguém que, potencialmente, poderia causar uma tragédia no trânsito”, pontua.
Para tentar mudar essa realidade, o diretor do Detran-DF ressalta que a autarquia foca, primeiramente, na conscientização. “O trabalho preventivo é realizado em faculdades, restaurantes, bares e grandes eventos, por exemplo”, afirma. “Para aquelas pessoas que insistem em beber e dirigir, temos a fiscalização, que é realizada em locais estratégicos. Fazemos um mapeamento dos pontos de grande movimentação, onde podem ter pessoas bebendo e que, potencialmente, podem acabar dirigindo”, acrescenta.
Para Hartmut Günther, professor de psicologia ambiental e do trânsito da Universidade de Brasília (UnB), os quatro eixos existentes para um trânsito seguro (educação, punição, fiscalização e leis eficazes) não funcionam tanto quanto deveriam no DF. “Tivemos o caso do motorista que matou um ciclista e foi solto após pagar fiança. É um absurdo. A legislação deveria ser mais rígida, mantendo esse tipo de infrator na prisão. Além disso, a multa deveria ser mais pesada”, pontua.
Em relação à fiscalização, ele aponta que as autoridades sabem onde estão os principais focos de pessoas que bebem e dirigem. “O ideal é reforçar a presença da fiscalização nesses locais, para evitar que essas pessoas continuem com essa prática”, avalia Günther. Sobre as campanhas educativas, o especialista afirma que não vê algo em relação à embriaguez ao volante “faz tempo” e destaca que essa é uma das formas importantes de prevenção.
Cultural
Adriana Modesto, doutora em transporte pela UnB, ressalta que o consumo de bebidas alcoólicas apresenta uma relação direta e indireta com diversos agravos à saúde. “Além disso, responde por um repertório de violências, entre as quais, aquelas relacionadas ao trânsito”, observa. “Um condutor alcoolizado se coloca em risco, assim como eventuais ocupantes do veículo e demais usuários da via, uma vez que pode experimentar alterações de comportamento, da noção de perigo e do nível de consciência”, explica.
Segundo ela, apesar de a legislação brasileira prever tolerância zero para concentração de álcool no sangue de qualquer motorista e de se reconhecer impactos positivos a partir da entrada em vigor da Lei Seca, a desastrosa combinação álcool e direção segue sendo uma das principais causas de sinistros de trânsito no Brasil.
A especialista destaca que vários fatores contribuem para tal conduta. “Destaco, como exemplo, os significados simbólico e cultural associados às bebidas alcóolicas com desdobramentos na segurança de trânsito. As bebidas são utilizadas como meio de socialização e diversão, amplamente divulgadas em meios de comunicação de larga escala, associadas a lazer e características climáticas do país”, pontua.
De acordo com Adriana Modesto, em relação à combinação álcool e direção, também é possível inferir a existência de fatores pessoais, familiares, determinantes sociais e institucionais. “Eles vão desde a predisposição, inclinação ao risco, descrença na fiscalização ou rigor judiciário na ocorrência de sinistros, estando o motorista sob efeito de álcool, falha na fiscalização, abordagens preventivas à prática que, eventualmente, podem conscientizar, mas não sensibilizar”, opina.
Memória
» 27 de janeiro de 2025 — Victor de Aquino Costa, de 18 anos, foi atropelado e morto por um motorista embriagado, que foi preso em flagrante pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) e solto em audiência de custódia. No momento da prisão, ele foi submetido ao teste do bafômetro e o resultado deu 0,51 miligramas de álcool por litro de ar expelido dos pulmões — acima de 0,34, a conduta já é considerada crime de trânsito;
» 27 de janeiro de 2025 — A PRF prendeu um motorista embriagado na mesma região onde o jovem foi atingido por um carro, na BR-020, em Planaltina. O motorista foi detido após desobedecer à ordem de parada e tentar fugir por cerca de 2 km. Após o teste de etilômetro, foi constatada a presença de 0,82 mg/L de álcool no organismo.
Legislação
O Projeto de Lei (PL) 2.567/24 quer alterar o Código de Trânsito Brasileiro, aumentando as penas dos crimes cometidos sob a influência de álcool. De acordo com o texto, quem praticar homicídio culposo enquanto dirige embriagado sofreria uma pena máxima de 18 anos de prisão, além da suspensão ou cassação da CNH — a pena atual é de cinco a oito anos de reclusão. No caso da lesão corporal grave ou gravíssima, a pena passaria de dois a cinco anos para dois a sete anos. O PL está em fase de análise nas comissões da Câmara dos Deputados.
Três perguntas para…
…Victor Quintiere, professor de direito penal do Ceub
Estamos vendo alguns casos de motoristas bêbados que causam acidentes no DF. Acredita que a legislação atual permite que as pessoas continuem bebendo e dirigindo?
Não, a legislação brasileira não dá margem para que essas pessoas continuem bebendo e dirigindo. Pelo contrário, prevê uma série de punições, que vão desde a responsabilização criminal até o pagamento de multas e a apreensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Portanto, a lei é clara: não há tolerância ou autorização para essa conduta.
Acha que a alta incidência de combinação de álcool e direção se dá pela falsa sensação de impunidade?
Acredito que sim. Essa falsa sensação ocorre porque o Estado não consegue estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Isso, somado a uma não efetivação da cultura de não se combinar álcool e direção, são fatores que acabam pesando e fazendo com que as pessoas tentem “driblar” a legislação.
O que poderia ser feito para que a legislação causasse um impacto maior e desestimulasse essa prática?
É importante refletirmos sobre como tornar a legislação mais eficaz na prevenção desses casos. A criação de leis, por si só, não resolve o problema, é fundamental investir em conscientização e educação. O Distrito Federal, assim como outros estados brasileiros, têm implementado políticas educativas voltadas para os motoristas atuais, assim como para as futuras gerações. Essas ações incluem campanhas em escolas, faculdades e espaços públicos. A conscientização é essencial para reforçar que álcool e direção não combinam.
Por Arthur de Souza do Correio Braziliense
Foto: Victor Sánchez Berruezo/Unsplash / Reprodução Correio Braziliense