O atendimento neonatal na rede pública de saúde vive um momento de crise. De acordo com dados da Secretaria de Saúde (SES-DF), dois bebês aguardavam por um leito de unidade de terapia intensiva (UTI), que estava com uma taxa de ocupação de 98,68% — os números são das 18h dessa quinta-feira (6/3). Mais cedo, sete crianças esperavam por uma vaga. Ao Correio, o governador Ibaneis Rocha (MDB) disse que a situação se agravou por causa de um problema estrutural no Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib). Por problemas na estrutura do prédio, o centro obstétrico teve de ser interditado.
Mas, de acordo com Ibaneis, o secretário de Saúde, Juracy Cavalcante, está trabalhando para resolver o mais rápido possível. “Além disso, ele (Juracy) está trabalhando com o objetivo de abrir vagas na rede privada, para suprir os atendimentos. Problemas acontecem, mas, no nosso governo, são enfrentados e resolvidos”, garantiu Ibaneis, que lamentou a situação. “Perder 34 leitos (do Hmib), de uma hora para outra, não é normal. Mas estamos cuidando para resolver no menor prazo possível”, afirmou ao Correio.
Em março do ano passado, o governador comentou sobre a dificuldade de contratar médicos para a rede pública de saúde. Perguntado se, de lá para cá, essa situação mudou, ele ressaltou: “Não, e durante um bom tempo será assim” — devido ao desinteresse de médicos para a rede pública, um problema crônico nacional.
Por meio de nota, a Secretaria de Saúde informou que a ocupação dos leitos infantis é regulada e depende da complexidade de cada caso. “É importante destacar que, enquanto aguardam atendimento, os bebês recebem todos os cuidados da equipe especializada em neonatologia, com vasta experiência no acompanhamento de gestantes de alto risco e recém-nascidos, além de apoio psicológico para os familiares”, ressaltou a secretaria.
Contratações
Ainda de acordo com a pasta, foi autorizada a contratação temporária de 50 médicos neonatologistas, que vão atuar com carga horária de 20 horas semanais, pelo período de 12 meses, com possibilidade de prorrogação por mais 12 meses. Segundo a SES-DF, as inscrições para o processo seletivo começam na próxima semana, e a previsão é de que os aprovados comecem a trabalhar em abril.
Outra ação divulgada foi a abertura de 10 novos leitos neonatais no Hospital Regional de Santa Maria (HRSM), além de determinação da transferência imediata do atendimento no Centro Obstétrico do Hospital Regional de Taguatinga (HRT) a outras unidades da rede, até reestruturar o fluxo hospitalar.
Sobre os problemas no Hmib, a pasta disse que adotou medidas corretivas e de monitoramento, como isolamento da área para garantir a segurança das equipes de saúde e dos pacientes; inspeções; e acompanhamento técnico detalhado das fissuras. Segundo a nota enviada ao Correio, também foi feita uma investigação geotécnica, para avaliar a condição do subsolo e os possíveis impactos na fundação. “Além disso, será realizado o monitoramento do solo e dos elementos estruturais, por uma empresa especializada, para verificar possíveis comprometimentos. Caso não sejam identificados danos estruturais, a reforma da ala afetada será iniciada”, ressaltou a secretaria, sem dar prazos.
Filas
Enquanto a rede pública enfrenta graves problemas, pacientes sofrem nas filas dos hospitais. Moradores do Gama, os autônomos Layse Maiana, 25 anos, e o marido, Diogo Viana, 31, levaram a filha, Maria Alicia, de 1 ano e 8 meses, ao HRSM. Eles chegaram à unidade às 8h e, até as 14h, aguardavam pela consulta. “Quando cheguei, deram pulseira amarela para minha filha, que estava com 38 graus de febre. Passado um tempo, a temperatura subiu para 39,6 graus e mudaram a cor da pulseira para laranja”, detalhou Layse.
Segundo ela, houve uma “pausa” nos atendimentos, por volta das 12h. “Se não fosse algo preocupante, nem estaríamos aqui. Estamos esperando desde as 8h e nem sequer temos previsão de quando seremos atendidos”, lamentou. “Faz dois dias que ela está tendo febres, dores, vômitos e enjoo. De ontem (quarta-feira) para hoje (ontem), ela chorou de dor”, comentou a mãe da Maria Alicia.
De acordo com o Iges-DF, que administra o HRSM, a demora é por causa do período de sazonalidade, em que muitas crianças, nessa época do ano, apresentam quadros de bronquiolite e pneumonia, fazendo que elas sejam internadas por, no mínimo, cinco dias. Pouco tempo depois de a reportagem procurar o Iges-DF, Maria Alicia foi atendida. “A médica passou exames. Vamos fazer e voltar aqui para o retorno”, contou Layse.
A reportagem também foi ao HRT, onde encontrou a auxiliar de cozinha Ana Carolina Medeiros, 28, que estava aguardando atendimento para a filha, Ana Liz Vitória, de 1 ano e 7 meses. “Tem cinco dias que ela está com febre, vomitando e não está comendo. Fiquei sabendo que tinha pediatria no Hospital de Taguatinga, vim para cá e, quando cheguei, me falaram que tinham apenas dois pediatras”, comentou.
Só que, após passar pela triagem, cerca de uma hora depois, a moradora de Samambaia Sul disse que o cenário mudou. “Fui informada que (o hospital) está com superlotação e que não tem previsão de atendimento”, afirmou, indignada com a situação. “Me informaram que é besteira vir para o hospital, que é melhor ir para o postinho perto de casa. E se a criança morrer? A minha filha está vomitando, não está comendo há cinco dias, está com a respiração ofegante e muita tosse. Isso é uma negligência!”, acrescentou, enquanto chorava.
Consulta
Ana Carolina disse que, por causa da situação, decidiu não esperar e pegou um carro por aplicativo até a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do Recantos das Emas, onde tentaria a consulta. “Acabo gastando muito nos deslocamentos e sequer consigo o básico, que é o atendimento”, desabafou.
Sara Jane, 27, moradora de São Sebastião, estava no Hmib para fazer uma ultrassom de rotina. “Estou no fim da gestação (36 semanas) e tenho uma condição em que meu bebê é pequeno para a idade gestacional”, comentou. “Durante toda a gravidez, o atendimento foi muito bom (no Hmib). Porém, agora que estou para ganhar o bebê, houve esse problema no Centro Obstétrico, e estou sendo transferida para o HRan (Hospital Regional da Asa Norte). Preferiria muito que fosse aqui, mas não tem o que fazer”, lamentou.
Fiscalização
Elissandro Noronha dos Santos, presidente do Conselho Regional de Enfermagem (Coren-DF), disse que está acompanhando a situação do atendimento neonatal. “Fizemos uma fiscalização durante o carnaval e nos deparamos com salas de parto sendo ocupadas por crianças que deveriam estar na UTI. Isso é uma condição crítica”, alertou.
Ele contou que a equipe falou diretamente com o secretário de Saúde, pois a situação requer medidas rápidas. “Ele abriu uma autorização de contrato temporário de neonatologistas, porém o problema é muito maior e somente uma especialidade não vai resolver a situação. Faltam técnicos de enfermagem, enfermeiros, materiais, ou seja, é todo um aparato”, observou Elissandro.
Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (FM/UnB) e pesquisador em Saúde Pública do Departamento de Saúde Coletiva da UnB, Estêvão Rolim disse que enfrentamos um cenário preocupante no DF, especialmente com a sazonalidade de maior incidência de bronquiolite viral e Síndrome Respiratória Aguda Grave.
“O período mais crítico é justamente entre os meses de março e junho”, ressaltou. “A situação é preocupante, em especial porque foi construído um cenário parecido com o que temos visto para os picos de dengue nos últimos anos: a desestruturação progressiva do atendimento na SES-DF, com favorecimento de estratégias pontuais desarticuladas por prestadores de serviço, frequentemente por dispensa de licitação”, observou.
De acordo com o especialista, para enfrentar essa situação, é essencial fortalecer a estrutura de atendimento da SES-DF e valorizar as carreiras profissionais. “Garantir condições de trabalho adequadas e remuneração, que permita a fixação de profissionais no SUS, ampliar a cobertura e a resolutividade da Atenção Primária, além de ter retaguarda eficiente para internações intra-hospitalares, com leitos disponíveis e suporte adequado, são medidas essenciais”, destacou.
A Promotoria de Justiça de Defesa da Saúde do Ministério Público do DF (Prosus/MPDFT), disse, por meio de nota, que vem acompanhando o déficit de médicos neonatologistas na rede pública de saúde, em especial seu agravamento, desde agosto de 2024. “Recentemente foram realizadas inspeções no Hmib e HRPL (Hospital Regional de Planaltina), onde foi constatado o bloqueio de leitos em razão da falta de neonatologistas. A Promotoria continuará com suas inspeções semanais. Além disso, a Secretaria de Saúde foi cobrada pela contratação desses profissionais, em especial pela chegada da sazonalidade de doenças respiratórias infantis”, alertou.
Por Arthur de Souza e Letícia Mouhamad do Correio Braziliense
Foto: Minervino Júnior/CB/D.A Press / Reprodução Correio Braziliense