A dor de ser obrigado a deixar para trás a terra natal, os laços familiares e tudo o que conhecem é um desafio para pessoas de várias partes do mundo, especialmente para refugiados. E um dos caminhos na adaptação à nova vida é abrirem os próprios negócios — seja porque têm um plano nesse sentido, seja por obstáculos com o idioma e o mercado de trabalho.
Não há dados sobre o número de refugiados que se tornaram empreendedores em Brasília, mas não é difícil encontrá-los. O Correio conversou com pessoas que se viram obrigadas a abandonar suas nações e escolheram a capital do país. Aqui, encontraram a prosperidade e a paz que procuravam.
Com a guerra destruindo tudo ao redor e ameaçando a sobrevivência, Ammar Abou Nabout, de 50 anos, tomou uma das decisões mais difíceis de sua vida: deixar a Síria e buscar segurança em um lugar desconhecido. Hoje, vive na capital com a família, onde recomeçou do zero.
“Todo o dia, a gente esperava a guerra terminar. Ela começou com uma manifestação na rua. Depois, morreu um; depois, morreram dois; depois, 10; depois, centenas e milhares. Foi indo devagar, até que, um dia, começaram a cair muitas bombas. A minha filha não podia mais ir para a creche. Foi esse o momento em que percebemos que não poderíamos mais viver ali”, relembra.
Ao chegarem ao Brasil, em 2014, Ammar e sua esposa, Yasmin Abou Nabout, 43, ficaram um ano sem conseguir emprego. O idioma, a dificuldade de adaptação cultural e as poucas oportunidades foram entraves. O casal se reinventou para garantir o sustento da família. A resposta veio com o empreendedorismo, investindo no que conhecem bem — a culinária árabe.
Com Yasmin à frente da cozinha, nasceu a lanchonete Damascus, na Asa Sul, em homenagem à capital da Síria. O local passou a oferecer pratos típicos, como esfihas, quibes e homus, levando sabores do Oriente Médio aos brasilienses. “Meu trabalho na Síria era como vendedor de roupas femininas. No Brasil, a negociação é muito diferente. Decidimos abrir uma lanchonete para trabalharmos juntos, com algo que minha esposa sabe fazer”, conta Ammar, que se orgulha da clientela fiel.
Compatriota de Ammar, a proprietária do UniCoffee, no Lago Norte, Jana Alraee, 45, também compartilha memórias traumáticas. “Todo o dia, tinha bombas e isso me deixava assustada. As meninas estavam na escola e meu marido no trabalho. Ficava com muito medo e só passava quando eles chegavam em casa”, recorda. Fugindo com a família do conflito, Jana chegou a Brasília em 2014.
A primeira iniciativa para se reestruturar foi fazer doces em casa para vender em feiras pela cidade. A ideia de comercializar comidas típicas de seu país surgiu após visitar uma feira em um shopping. “Quando eu vi isso, pensei que também conseguiria fazer. Comecei com docinhos. Depois, passei para encomendas, e cheguei a cozinhar para a Embaixada dos Estados Unidos”, celebra. Este ano, ela conseguiu abrir o empreendimento. O UniCoffee representa uma grande conquista para ela e os familiares. “Eu tenho uma nova vida aqui. Minhas filhas se formaram e também podem viver melhor”, avalia.
Conquistas
A artesã venezuelana Emely Silva, 33, veio para Brasília em 2021, a convite de duas outras amigas de seu país que moravam na capital. Em busca de uma trajetória sem tormentos e fugindo da crise, Emely encontrou na cidade um novo motivo para seguir em frente. “Mesmo com medo, estava com muita esperança de conseguir viver de novo”, comenta.
Ela sempre quis ser empreendedora, mas não pôde concretizar o objetivo na Venezuela. “Lá, eu fazia meus trabalhos autônomos. Após a pandemia e com o agravamento da crise no país, não consegui me reerguer”, explica. Ao chegar à capital brasileira, começou a vender roupas de bebê nas ruas do DF. Hoje, é dona de um box na Feira da Torre de TV, onde comercializa vestuário produzido em crochê.
O ofício ajudou Emely a superar a barreira do idioma. “Eu não falava nada de português, mas tinha muita vontade de trabalhar. Foi com as vendas que comecei a aprender português. Tentava escutar muito o que as pessoas falavam”, conta.
A guerra também é ameaça constante no Burundi — país da África Oriental — e essa realidade é ainda mais dolorosa para as mulheres. Odette Nduwayezu, 42, tinha o desejo de estudar e viver com dignidade. Isso a impulsionou. “Eu cresci em meio à guerra e sobrevivi. Eu perdi a minha mãe, o meu pai e alguns parentes. Eu orava para conseguir sair de lá. Eu não tinha esperança de vida”, relata.
Em Brasília desde 2014, busca crescer profissionalmente como massoterapeuta humanizada. “Ser uma estrangeira trabalhando no Brasil não é fácil. Tem muitos desafios. As pessoas não confiam no nosso trabalho, acham que não somos capazes. Com muito esforço e dedicação, eu estou conquistando o meu espaço”, afirma. E, embora tenha deixado para trás o lugar onde nasceu, o que mais dói é a ausência dos entes queridos. “Eu não sinto falta do meu país, eu sinto falta da minha família”, lamenta.
Sobre a língua portuguesa, Odette ainda passa por alguns apertos. “Para eu aprender português, foi muito difícil. Eu misturava os idiomas que eu conhecia — inglês e francês”, diz. Apesar do esforço, o preconceito linguístico afetou sua confiança. “Em quatro meses, eu estava falando bem, mas por conta dos comentários das pessoas, fui ficando constrangida e travou o meu aprendizado. Até hoje, estou aprendendo.”
Odette tinha um consultório. Hoje, atende a clientes com hora marcada.
*Estagiários sob a supervisão de Malcia Afonso
Por Por Brasília
Fonte Correio Braziliense
Foto: Arquivo pessoal