Por muito tempo, pensamos na inteligência artificial como uma engrenagem para automatizar tarefas. Silenciosa, previsível, escondida nos bastidores. Mas isso está mudando — e rápido.
As últimas pesquisas de duas instituições centrais no debate sobre o futuro do trabalho — Harvard Business School e Microsoft — apontam para uma virada de chave: a IA deixou de ser apenas ferramenta para se tornar parte ativa das equipes. Agora, ela opina, propõe, compara, depura e até encoraja. Não é mais o que fazemos com ela que importa, mas como convivemos com ela.
A IA entra em cena — e muda a dinâmica do grupo
Na Harvard Business School, o estudo The Cybernetic Teammate revelou que a IA pode atuar como parceira criativa — e com resultados surpreendentes. Em um experimento com mais de 700 profissionais da Procter & Gamble, equipes que integraram IA no processo criativo superaram tanto os times exclusivamente humanos quanto os indivíduos com IA isolada. A conclusão: a colaboração híbrida — humano + IA — multiplica o desempenho.
Mais do que performance, algo inesperado surgiu: os profissionais relataram mais satisfação, fluidez e motivação ao trabalhar com IA. A presença da máquina, em vez de gerar frieza, reduziu fricções humanas e ampliou a sensação de validação. Como se a IA, ao operar sem julgamentos, trouxesse leveza ao grupo.
Outro achado notável foi a quebra de fronteiras entre departamentos. A IA ajudou profissionais técnicos a pensarem de forma mais estratégica — e profissionais de marketing a incorporarem aspectos técnicos em suas ideias. Um efeito de “despolarização cognitiva”: a IA se torna ponte entre silos, suavizando a necessidade de reestruturações pesadas.
Microsoft: a “firma fronteira” já está entre nós
No relatório global Work Trend Index 2025 a Microsoft apresenta um conceito provocador: a Firma Fronteira. Um novo tipo de organização em que humanos e agentes de IA dividem tarefas, decisões e responsabilidades em tempo real.
Três estágios definem essa maturidade:
Humano com IA assistente: automação e apoio individual;
Times humano-agente: decisões e execuções compartilhadas;
Empresa operada por agentes, supervisionada por humanos: a IA assume processos inteiros, cabendo ao humano garantir propósito, ética e direção.
Hoje, 81% das empresas já projetam operar com agentes digitais nos próximos 18 meses. No Brasil, o entusiasmo é ainda maior — 94% dos líderes acreditam que 2025 será um ponto de virada. Mas há um desalinhamento: apenas 54% dos profissionais se sentem preparados para colaborar com a IA.
A liderança entre humanos e algoritmos
Esse descompasso cultural coloca os líderes em um novo território. A IA muda não só o que fazemos, mas como nos organizamos — e exige da liderança uma postura muito diferente daquela que aprendemos no século XX.
Se antes o líder era o centro de comando, hoje ele se torna orquestrador de inteligências múltiplas. Precisa coordenar não apenas times humanos, mas agentes digitais — que operam com lógicas próprias, aprendem com dados e desafiam o modelo tradicional de autoridade.
A liderança contemporânea exige:
Curadoria ética, para decidir o que deve ou não ser delegado à IA;
Mediação simbólica, para manter a coesão emocional das equipes em meio à fluidez;
Humildade estrutural, para admitir que não se sabe tudo — e nem precisa.
Como lembra Edgar Morin, o líder em ambientes complexos precisa integrar saberes distintos e sustentar a incerteza sem cair no caos. Já Zygmunt Bauman nos mostra que, em tempos líquidos, as organizações precisam de “ilhas de estabilidade”: clareza de propósito, segurança psíquica e confiança emocional. E quem constrói essas ilhas é a liderança.
Nesse novo normal, o verdadeiro poder do líder está menos na sua capacidade de decidir sozinho — e mais na sua habilidade de sustentar o sentido coletivo, proteger o que é humano e guiar a travessia com consciência.
Não basta saber usar IA — é preciso pensar com ela
O que está em jogo vai além da capacitação técnica. Precisamos de uma transformação mental e simbólica. E, para isso, dois pensadores ajudam a iluminar o caminho.
Edgar Morin, com sua teoria da complexidade, nos lembra que sistemas híbridos geram propriedades emergentes: resultados que ninguém previu, justamente pela interação entre diferenças. Uma equipe humano-IA não é só mais rápida — ela é estruturalmente diferente. Mistura lógicas, linguagens e ritmos. Liderar isso exige pensar como um maestro, não como um engenheiro.
Já Zygmunt Bauman, com o conceito de modernidade líquida, nos alerta: em tempos de fluidez, as estruturas fixas desmancham. Equipes se reconfiguram conforme a demanda. Identidades profissionais se tornam múltiplas. Isso gera potência — mas também ansiedade. O líder, nesse cenário, deve criar ilhas de estabilidade em meio à mudança: espaços de confiança, clareza de propósito e segurança psíquica.
O que líderes brasileiros precisam fazer agora
Diante desse novo normal, não basta implantar IA. É preciso reconstruir a cultura para recebê-la:
Capacite todos, não só os técnicos
Ensine o uso da IA na prática cotidiana. Estimule a autonomia crítica: saber usar, questionar e interpretar.
Crie ambientes de segurança psicológica
Quando o medo de errar com a IA é maior que a curiosidade, a inovação trava. Permita experimentação com suporte.
Redesenhe os fluxos de trabalho
Forme equipes mistas, dissolva silos e libere a IA para agir com autonomia onde for mais eficaz.
Cultive uma ética algorítmica
Estabeleça princípios claros sobre transparência, vieses, impactos e responsabilidade compartilhada.
Orquestre inteligências múltiplas
Valorize o que só os humanos trazem — sensibilidade, intuição, julgamento ético — e integre isso à lógica da IA.
Monitore os efeitos colaterais
Acompanhe de perto impactos sobre clima, saúde mental e engajamento. Não terceirize à tecnologia o que pertence à gestão.
Mais do que eficiência, uma nova humanidade
O futuro do trabalho não é só automatizado. É compartilhado. E nossos colegas mais produtivos talvez não sejam inteiramente humanos — mas isso não os torna menos relevantes.
A pergunta real não é se a IA funcionará — Harvard e Microsoft já mostraram que sim. A pergunta é: quem seremos nós quando ela estiver sentada ao nosso lado — propondo, decidindo, aprendendo? Porque, no fim das contas, o que vai diferenciar sua empresa não será a tecnologia, mas a humanidade que você conseguir preservar.
Por Por Brasília
Fonte Exame
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