Conheça a nossa Geração Coca-Cola

Da rebeldia às transformações sociais, o rock de Brasília, nos anos 1980, influenciou uma época inteira e deixou o legado de liberdade, transgressão e cultura

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O tédio de viver em uma Brasília recém-inaugurada junto à repressão da ditadura militar foram combustíveis para o surgimento de uma geração marcada pela rebeldia e pelo desejo de transformação cultural. Em 1985, o lançamento da música Geração Coca-Cola, faixa de maior sucesso do disco de estreia da Legião Urbana, resumiu o sentimento da juventude da época e deu ao rock brasiliense projeção nacional. “Somos o filho da revolução/ Somos burgueses sem religião/ Somos o futuro da nação/ Geração Coca-Cola.” 

“O ‘não’ da ditadura foi o motor para a nossa geração. Porém, a produção cultural de Brasília fugia do que se fazia no eixo Rio-São Paulo. Tínhamos uma preocupação filosófica em nossas letras e narrativas que só a solidão da capital pôde provocar”, conta Paulo César Cascão, 58 anos, fundador da banda Detrito Federal, sucesso nas décadas de 1980 e 1990. Com forte influência do punk rock, a arte fabricada em Brasília colocava o dedo na ferida, questionando e transgredindo costumes, apesar da enxurrada de lixo vindo da indústria cultural da época.

Em seu próprio nome, o Detrito Federal dava o tom de suas letras. “A gente queria mostrar o que não funcionava na cidade, o outro lado de Brasília”, ressalta Cascão. “Discutíamos sobre política, anarquia e poesia. Como éramos colados com o pessoal das embaixadas, recebíamos revistas e discos antes que outros lugares do país. E, diferentemente de São Paulo, por exemplo, o punk rock daqui era singular em sua estética e tinha mais conteúdo”, resume o hoje advogado.

“Barricada cultural”

Para o poeta e professor Paulo Kauim, 62, o trecho “vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês”, da canção de Renato Russo, resume bem o ideal da Geração Coca-Cola. “Os encontros nas quadras, na Faculdade de Arquitetura, da UnB, nas ciclovias e em tantos outros lugares foram, aos poucos, formando uma barricada cultural contra o regime militar. Tínhamos fome por mudanças, liberdade e mobilidade social”, relata. 

Foi no Teatro Rolla Pedra, em Taguatinga, que parte dessa juventude viveu “arte sob nuvens de chumbo”, como descreve o poeta. O espaço misturava diferentes tribos e manifestações culturais, que incluíram música — com shows da Legião Urbana, do Finis África, da Plebe Rude —, teatro, dança e artes plásticas. “O Rolla Pedra foi como o Mito da Caverna, de Platão, mas ao contrário. Na (literal) escuridão do ambiente, a gente encontrava uma luz por meio da cultura”, compara. 

“Percebo que, hoje, a juventude tem muita informação, mas pouco conhecimento. Há dispersão demais. Sinto falta dos encontros de verdade, cara a cara, e daqueles grupos que mobilizam as suas comunidades”, avalia Kauim. Segundo ele, uma das principais lições que carrega desse período partiu do próprio Renato Russo, ícone do movimento. “Ele deixou uma mensagem que dizia algo como ‘estudem, pois quem tem conhecimento tem poder'”. 

Brasília underground

Izabel Morais, 50, lembra de frequentar, nos anos 1980, o Teatro Sesc Garagem, na 913 Sul, e nos anos 1990, o bar Estação 109, Asa Sul. “Era onde as bandas se encontravam. Em festas, nas casas de amigos, o que mais tocava era Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude. O rock de Brasília era diferente do Rio de Janeiro e de São Paulo, tinha uma pegada underground. Aqui, se fazia um som autoral, único”, opina. 

Segundo a hoje pedagoga e conselheira de cultura do Guará, havia uma expectativa coletiva para o lançamento dos LPs das bandas brasilienses, que levavam de oito a 12 meses para saírem. “Ficávamos ansiosos para conhecer as artes das capas dos discos também. Lembro-me que os grupos maiores faziam seus lançamentos em programas de tevê. Era marcante, pois toda a família se reunia na sala para assistir”, recorda.

O agitador cultural Mário Pazcheco, 60, foi pioneiro na publicação de fanzines das bandas do DF e uma das primeiras pessoas a entrevistar Renato Russo, durante um show do músico no Guará. “Brasília tinha jovens ativistas com um discurso aberto em um país fechado”, comenta. Mais tarde, ele passou aos filhos legados importantes da geração Coca-Cola. “Liberdade, pé na estrada e conhecimento”. Em referência à filosofia “do it yourself” (DIY), do movimento punk, Mário ainda hoje aconselha: “Faça você mesmo”! 

A mais pedida

“Era bem jovem quando este hit da Legião Urbana (Geração Coca-Cola) foi lançado. Lembro-me da emoção que senti, pois a canção era de um compositor e banda que levaram Brasília a ser chamada de capital do rock”, recorda-se Marcelo Bandão, vocalista e líder da banda Magoo. “Eu me emocionei também ao obter um autógrafo do Renato Russo e ao assistir, no Ginásio Nilson Nelson, ao show de lançamento do álbum Dois”.

Quando ouviu, pela primeira vez, Geração Coca-Cola na rádio Atlântida FM, Edmilson Batista era adolescente e conta que foi tomado por um impacto. “Quatro anos depois, certamente influenciado pela Legião, criei com amigos a banda Contacto Imediato, que existiu até 2016. Participamos do Festival do Colégio Objetivo. A Legião e Renato Russo foram referência para nós jovens músicos da Geração Coca-Cola”, ressalta.

O guitarrista e compositor Tião Rodrigues, fundador da banda Squema Seis, que atualmente atua como produtor musical, conta que o grupo costumava animar bailes de formatura de colégios da cidade à época em que a Legião Urbana era idolatrada pelos estudantes. “Nos bailes, em clubes de Brasília e Taguatinga, onde tocávamos, o repertório tinha sempre músicas da Legião Urbana e uma das mais pedidas era Geração Coca-Cola, que tinha tudo a ver com aquela garotada”.

Por Letícia Mouhamad e Irlam Rocha Lima do Correio Braziliense

Foto: Mila Petrillo/CB/D.A Press / Reprodução Correio Braziliense