Para ninguém esquecer: trânsito mata mais do que armas de fogo no DF

Os memoriais de luto espalhados pelas vias alertam sobre a violência no trânsito e a busca por justiça. Na última década, 2.829 pessoas morreram. É como se um avião comercial caísse todos os anos nesse período e ninguém sobrevivesse

“Recebi a notícia por ligação, na noite de um domingo nublado. Minha primeira reação foi olhar para a janela do apartamento de nossa mãe. Me perguntava como contaria a ela que sua filha fora atropelada e não havia resistido. Daquele momento, me lembro apenas de seus gritos de desespero”, recorda Fernando Braz, 30 anos, irmão de Amanda Martins Machado, atropelada enquanto pedalava em 24 de novembro de 2024. 

A jovem nutricionista foi morta aos 27 anos por um motorista que dirigia a mais de 100km/h em uma via cuja velocidade máxima permitida é 60km/h. Para ninguém esquecer Amanda, sua bicicleta, partida ao meio com o impacto da batida, foi soldada, pintada de branco e posicionada na marginal norte da Estrada Parque Taguatinga (EPTG). A ghost bike — homenagem feita a ciclistas que morreram atropelados — lembra a todos que ali uma vida foi interrompida por uma tragédia no trânsito. 

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) dão conta de que os sinistros de trânsito matam 1,19 milhão de pessoas no mundo a cada ano. No Brasil, números mais recentes divulgados pelo Ministério da Saúde contabilizam 34.881 óbitos em 2023, 2,91% a mais que em 2022. Já no Distrito Federal, o balanço do Departamento de Trânsito (Detran/DF) destaca que, na última década, 2.829 pessoas perderam a vida nas vias da capital do país — uma média de 280 por ano. A título de comparação, é como se uma aeronave Boeing 737 caísse em solo brasiliense todos os anos nesse período e ninguém sobrevivesse. Uma tragédia.

“Cada um por si”

Se a queda de um avião e a morte de seus passageiros comovem um país inteiro e têm repercussão internacional, por que não ocorre o mesmo quando se trata de vítimas de trânsito? “O fato de nos deparamos todos os dias com esses eventos provoca, gradativamente, essa falta de sensibilização. Chega a um ponto em que nós, enquanto espectadores, não aguentamos mais assistir a tantas catástrofes”, explica Hartmut Günther, professor de psicologia ambiental e do trânsito da Universidade de Brasília (UnB).

“Então, um mecanismo de defesa é tentar ignorá-las. É ‘cada um por si, e Deus por todos’. A não ser, claro, que isso nos toque de forma direta”, completa. A normalização dessas mortes afeta, como uma via de mão dupla, a responsabilidade de condutores e as medidas de prevenção, “que se tornam lentas e paliativas”, avalia o professor. 

Somente em 2024, 229 pessoas morreram nas vias da capital, de acordo com o Detran. O número é 151% superior à quantidade de mortes por arma de fogo, 91, conforme dados do Anuário de Segurança Pública do DF nesses mesmo período. Segundo o Detran-DF, até maio de 2025, a capital já registrou 107 mortes — 15 óbitos a mais que o mesmo período do ano anterior, que contabilizou 92 mortes.

Segundo um levantamento da Associação Brasileira do Medicina do Tráfego (Abramet), a falta de reação, resposta tardia ou ineficiente ao volante foram as principais causas de mortes e ferimentos no Brasil, seguidas de velocidade incompatível e ingestão de álcool. Questões relacionadas à via, ao veículo e a fatores ambientais completam a lista, como: iluminação deficiente, presença de animais na pista, ausência de sinalização, curva acentuada, falhas elétricas no automóvel, desgaste do pneu e chuva. O estudo reforça que “os sinistros de trânsito são eventos não intencionais e evitáveis”. 

Trecho perigoso

Em Sobradinho, 150 passos separam duas cruzes localizadas no km 10, da BR-020. Cravadas à beira da estrada, ambas recordam as vidas de Antônio Marcos dos Santos e Anísio de Oliveira, que tiveram fim em sinistros de trânsito no Distrito Federal. Destas vítimas, pouco se sabe. Sem datas de nascimento ou falecimento nem mensagens fúnebres, resta a quem transita pelo trecho curiosidade e consternação. 

A cruz de Antônio, miúda, é tomada por um matagal e tem aos poucos o nome apagado pelo tempo. A de Anísio está acompanhada de uma bicicleta branca retorcida, com pneus danificados e sem pedais, indicando que o homem morreu sobre duas rodas. Com movimentação constante de pedestres e ciclistas, fluxo intenso de veículos pesados e iluminação insuficiente, o trecho é um dos mais perigosos de todas as BRs que cortam o DF. A Polícia Rodoviária Federal (PRF) registrou, nos últimos cinco anos, 264 sinistros somente neste ponto da BR-020.  

Durante três meses, a reportagem percorreu diferentes vias do DF e, por meio dos registros em cruzes, ghost bikes, capacetes e capelas, investigou as histórias por trás de cada tragédia; além de conversar com sobreviventes e familiares de vítimas; e obter dados, pesquisas e análises de especialistas em segurança viária que apontaram os caminhos para conter as tragédias nas vias. 

Luto à beira da pista

A fragilidade e a finitude da vida são escancaradas por meio dos memoriais de luto à beira das estradas servem como “placas de trânsito não oficiais”, que alertam para os perigos das rodovias e mantêm viva a memória de quem se foi. É o que defende Renner Vilela, professor, historiador e mestrando pela Universidade Estadual de Goiás, cuja tese é sobre cruzes de beira de estradas. “Se eu passo em um trecho de rodovia e vejo vários desses elementos, logo assumo que trafegar por aquele ponto é arriscado e, portanto, preciso ter atenção redobrada”, destaca.  

“No passado, era comum posicionar cruzes onde ocorreram batalhas, assassinatos e outros tipos de morte violenta, não só para marcar o local, mas como forma de sacralizar aquele espaço, livrando-o de espíritos malfeitores e demônios”, ressalta o historiador. 

Em um cruzamento que dá acesso a via para Formosa (GO), no km 25,9 da BR-020, está a ghost bike de Armando Leite de Santana, morto aos 62 anos, em 2022, após ser atropelado por um carro. Imagens da época mostram o párabrisa do veículo completamente destruído devido ao impacto da batida. “Dá uma tristeza quando passamos por aqui. Nessa concorrência entre motoristas e ciclistas, somos o braço mais fraco. É desleal”, comenta Geraldo Gomes, 55, militar da reserva, que costuma pedalar em grupo nas rodovias do DF.

Por meio de Geraldo e do colega ciclista Eduardo Fernandes, 55, a reportagem descobre que Armando era professor em Planaltina e gostava de pedalar sozinho. A família da vítima, porém, não foi localizada. “Além dele (Armando), perdemos outro colega de pedal nessa mesma via, atropelado por um motorista embriagado. Temos o acostamento, mas de nada adianta, pois não é respeitado. Uma ciclovia resolveria o problema”, avalia Eduardo. 

Saudade de Amanda

Apaixonada pela profissão, Amanda Martins Machado, que morreu atropelada na marginal da EPTG, conquistou uma carreira bem-sucedida de nutricionista em um hospital de Brasília. Lá, desenvolveu um projeto, que mais tarde levou seu nome, no qual criava pratos especiais para crianças doentes internadas na instituição. 

“Ela era sonhadora e tinha pressa de viver, então, queria conquistar tudo muito rápido. Corajosa, colocava uma mochila nas costas e viajava sozinha todos os anos. Um mês antes de sua morte, começou a pedalar, era seu novo hobby”, diz o irmão Fernando. A jovem foi enterrada com o jaleco de nutricionista. 

Filhos de mãe solo, os irmãos nunca ficaram longe um do outro. Em Ceilândia, compraram cada um seu apartamento no mesmo condomínio. Ambos cuidavam da matriarca, de idade avançada. Eram um trio. “Apesar de unidos, não tínhamos muito o costume de nos abraçar e dizer frases bonitas. Falávamos ‘eu te amo’ somente com o olhar”, conta o analista de sistemas. 

“Dia 23 de novembro, passei por uma ghost bike voltando para casa. Como Amanda tinha começado a pedalar recentemente, me bateu a preocupação e pensei ‘preciso alertá-la sobre isso (andar de bicicleta em rodovias movimentadas), pode ser perigoso’. Mas não deu tempo. Ela foi morta no dia seguinte”, lembra o irmão. 

Lidar com as burocracias funerárias foram, para uma família, uma dor ainda maior. “É tudo muito protocolar. Nos sentimos pequenos”, comenta Fernando. Oito meses após a morte de Amanda, o medo do trânsito ainda reverbera. “Sempre que vamos atravessar a rua, ficamos com aquela aflição. Minha mãe conta que, se eu não estou em casa e ela escuta o barulho, ou vê uma ambulância, já entra em desespero”, relata. 

A pedido de Fernando, a bike foi reformada e instalada na EPTG pela organização não-governamental Rodas da Paz. “Eu não tinha mais condições de ver aquela bicicleta partida na minha garagem todos os dias. Precisava dar um destino a ela. Então, quando a instalaram na estrada, senti um misto de emoções, principalmente, de dever cumprido”, ressalta. 

No início de julho deste ano, o Tribunal de Justiça do DF e Territórios (TJDFT) recebeu a denúncia que prevê a ocorrência de crimes de trânsito. O processo tramita no Tribunal do Júri e o julgamento ainda não foi marcado. Fernando espera que a Justiça seja feita em relação ao motorista. 

Aumento de sinistros

A falta de infraestrutura adequada associada ao crescimento da frota de veículos resulta no aumento de sinistros. Nesse contexto, as motocicletas são protagonistas. É o que aponta o estudo Mortalidade no Trânsito, Desenvolvimento Econômico e Desigualdades Regionais no Brasil, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), publicado em neste ano. 

“As motos são opções mais acessíveis e atrativas, em especial, para o público jovem, que está iniciando a vida econômica. Além disso, houve um crescimento considerável na quantidade de motociclistas que trabalham para aplicativos de entrega”, aponta o autor do estudo, Carlos Henrique de Carvalho, mestre em engenharia de transportes, doutor em economia e pesquisador do Ipea. 

Além disso, o especialista alerta que melhorias restritas às pistas, como recapeamento, não são suficientes para sanar os problemas no trânsito, visto que ‘estimulam’ o aumento da velocidade, a energia das colisões e a quantidade de sinistros. “Aperfeiçoamentos viários mais completos são fundamentais. Isso inclui sinalizações de segurança, intervenções adequadas para o transporte ativo, moderação de tráfego nos pontos críticos e, claro, campanhas de conscientização permanentes”, completa o pesquisador. 

Podia ser evitado

O termo “acidente de trânsito” traz a conotação de algo imprevisível e incontrolável, muitas vezes minimizando a responsabilidade dos envolvidos, enquanto a expressão “sinistros” reconhece que esses eventos podem ser evitados e são geralmente resultado de negligência, imperícia ou imprudência de condutores e pedestres. 

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira

Por Por Brasília

Fonte Correio Braziliense      

Foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press