Quem passa pelos corredores da Escola Morro da Cruz, em São Sebastião (DF), se pergunta se está mesmo no Brasil ao ouvir as conversas vindas de três salas de aula que receberam alunos da etnia Warao entre 4 e 17 anos.
Os Warao (povo da água na língua materna) são a segunda maior etnia da Venezuela, com cerca de 49 mil pessoas, de acordo com um censo realizado em 2011 pela Agência da ONU para Refugiados (ACNUR).
Subdividem-se em centenas de comunidades em uma região que se estende por quase todo o estado de Delta Amacuro e parte dos estados Monagas e Sucre às margens do Delta do Orinoco (aproximadamente 40.000 km²).
Desde o final de Novembro de 2022, a Cáritas Arquidiocesana de Brasília, juntamente com a Secretaria de Desenvolvimento Social (Sedes), apoiadas pela ACNUR e pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), desenvolveu um projeto socioassistencial que tem o objetivo de amparar a comunidade que refugiou-se em Brasília devido à crise política e econômica na Venezuela.
“Nosso trabalho tem quatro vertentes: educação, inclusão social por meio do trabalho, saúde e garantias de direitos”, explica o diretor-executivo da Cáritas Arquidiocesana de Brasília, Paulo Henrique de Morais.
Conforme a recomendação da ACNUR, nenhuma criança refugiada deve ser privada de escolaridade. Assim, a Escola Classe Morro da Cruz, inaugurada no dia 6 de março deste ano (2023), recebeu cerca de 22 alunos que foram divididos de acordo com sua faixa etária.
A professora Bárbara Ribeiro, que está acompanhando os jovens dentro da sala de aula e também foi uma das desenvolvedoras do projeto, diz que os profissionais da educação enfrentam muitos desafios ao participar do processo de alfabetização dessa comunidade.
Além da falta de recursos e materiais devido à forma repentina que a escola foi inaugurada, já depois do início do ano letivo, a formação de professores não envolve o debate sobre questões indígenas e por isso existe a dificuldade social de como educar essa etnia sem impor uma cultura sobre a outra e resultar em um processo de catequização.
O professor Marino Sérgio Rodrigues, que trabalha como tradutor na escola, destaca que, nas coordenações, “nós conversamos para tentar estabelecer um ambiente que não seja de violência ou uma tentativa de colonizar o outro, de fazer juízo de valor de alguma coisa. O choque cultural é muito grande, mas tentamos estabelecer uma comunicação o menos invasiva possível.”
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional exige um professor intérprete quando o aluno não fala o idioma do país em que está inserido.
Com os Warao, além da barreira do idioma, existe também uma grande diferença cultural, que é olhada com sensibilidade pelos educadores.
Por esse motivo, um monitor do próprio povo Warao acompanha o ensino dos jovens diariamente, atuando como mediador por meio do dialeto e garantindo que o ambiente escolar seja confortável para todos e não haja desrespeito à cultura.
“Eles se sentem muito mais a vontade quando falam em warao. Existe um momento na sala em que todos eles falam no dialeto, especialmente durante o lanche quando comem juntos”, conta Marino.
O tradutor também destaca as dificuldades que percebeu: “Para eles, essa rotina de organização, cheia de regras é muito diferente.
Eles custaram para aprender como se usa uma descarga, como ficar numa fila, o tom de voz que usamos. Às vezes, a gente tem que lembrar pra eles sobre o tom de voz, sempre com muito carinho, e eles respondem ‘perdon!’ ”
Os estudantes estão aprendendo aos poucos o novo idioma. O que mais gostam na escola são os momentos do recreio e da merenda, porém também estão empenhados em obter novos conhecimentos, comentou Marino.
Em relação à interação com os brasileiros, Marino diz que está sendo um processo gradual. A professora Bárbara explica que há a curiosidade de conhecer uma realidade diferente da que eles estavam acostumados anteriormente, mas que o que prevalece é o comportamento defensivo.
“Existe uma curiosidade, mas também existe o medo. Os povos indígenas, num contexto histórico, sofrem racismo e preconceitos. Eles são vistos como exóticos, como selvagens, como estranhos, como um problema. O povo Warao, além de sofrer por ser indígena e por ter características físicas muito singulares da etnia, também sofre por ser imigrante. A comunidade Warao é muito perseguida. Muitos dos alunos viram seus pais e amigos serem agredidos, expulsos e assassinados”, conta a professora.
“Maduro mata a gente, por isso viemos para cá”, fala um dos jovens de 14 anos do projeto educacional, referindo-se ao atual Presidente da Venezuela, Nicolás Maduro.
Por mais que haja desafios, Bárbara cita também as oportunidades de manter esses jovens vinculados à escola. Encontros interculturais são promovidos.
A vivência no cotidiano escolar dessas problemáticas acrescentam nos processos formativos dos profissionais, pois os professores são condicionados a estudar para receber da maneira mais correta essa comunidade.
Quanto ao futuro desses estudantes, Bárbara explica que, da parte deles, ainda não há uma grande expectativa do que irão fazer profissionalmente.
Eles não precisavam ter essas preocupações antes, já que viviam em comunidades indígenas e nunca nem tinham frequentado uma escola antes.
Segundo ela, está muito recente o convívio e inclusão dentro do Brasil. Eles estão procurando primeiro sobreviver, depois esperançar.
Por Redação Jornal de Brasília
Foto: Povo Warao – retirado do cartão de informação da ACNUR / Reprodução Jornal de Brasília