“No natal, perguntamos às crianças o que elas queriam ganhar. Um deles me disse que queria comida, uma cesta básica. Uma criança não devia se preocupar com o que vai comer ou, pior ainda, se vai comer algo”, contou Diane Gaudino, de 54 anos, diretora do Centro Social Santo Aníbal, no Guará.
Como escreveu a escritora Lya Luft: “A infância é o chão sob o qual caminharemos o resto de nossas vidas”. Por acreditar em um futuro melhor através da garantia de ser criança de forma segura, associações no Distrito Federal se esforçam para mudar a vida de crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidade nas periferias da capital.
“Ver um sorriso no rosto de cada um deles não tem preço. É isso que me faz continuar”, conta Diane. O Santo Aníbal não recebe auxílio do governo e o local é mantido apenas por doações e pelo bazar permanente realizado pela equipe. Com centenas de crianças matriculadas, o centro não atende apenas o Guará, mas todo o Distrito Federal e atua há mais de 15 anos com vítimas de violência física e sexual, além de vulnerabilidade social e econômica.
“Eu vejo as crianças daqui crescerem e superarem seus traumas. A vida deles se torna muito diferente do que poderia ter sido, por oferecermos a chance de se alimentar, de brincar, de aprender coisas novas e, principalmente, de fazer amigos”, diz a diretora. Há alguns anos, o local atendia crianças de até 10 anos, apenas, estendendo a idade máxima para frequentar o centro ao longo dos anos. “Os meninos chegavam aqui e me perguntavam ‘tia, agora eu tenho 11 anos. O que vou fazer?’. Então fomos estendendo e hoje atendemos os adolescentes até 17 anos. É impressionante ver um jovem brincando, pintando, fazendo oficina de teatro, sem querer ficar apenas no celular”, aponta Diane. “Devolvemos a alegria, a esperança e a oportunidade de estar em um lugar seguro”, completa.
O centro também é um apoio para os pais, que podem trabalhar enquanto os filhos são supervisionados. “Eu não sei o que seria de mim sem esse lugar. Minha filha fica aqui enquanto eu posso garantir renda para a casa”, conta a atendente de lanchonete Glauciene da Silva, 37. Mãe de Isadora, de seis anos, ela diz que o semblante da filha mudou após frequentar o espaço. “Ela volta para casa animada, feliz. Quando chega aqui abraça todas as ‘tias’, é uma alegria muito grande poder ver se divertindo e aproveitando”, completa.
O Brincar que muda vidas
Para a psicopedagoga clínica Andréa Abreu, brincar permite que a criança explore o mundo, desenvolva a criatividade, aprenda a lidar com emoções, além de conflitos e construir habilidades sociais e cognitivas. “O acesso à cultura — como livros, músicas, filmes, teatro e outras manifestações artísticas— amplia o repertório da criança, fortalece sua identidade e o pensamento crítico. Ambos são direitos essenciais e não devem ser vistos como luxo, mas como parte da formação”, defende. Para a especialista, garantir o direito à infância é um dever coletivo. Garantir o acesso à infância é um dever coletivo. “Precisamos de políticas públicas que promovam educação de qualidade, espaços seguros para brincar, acesso à arte e cultura, além de combater o trabalho infantil e a violência”, afirma. “Famílias, escolas, governo devem atuar juntos para construir ambientes que protejam, acolham e permitam que cada criança viva plenamente sua infância”, completa.
Do outro lado do Distrito Federal, em São Sebastião, um espaço tem como objetivo, justamente, garantir que crianças da região possam fazer o que crianças devem fazer: brincar. Colorida, aconchegante e constantemente tomada por risadas, a Brinquedoteca Comunitária Ludocriarte é o lugar preferido de muitos moradores da Região Administrativa. Fundada há 20 anos, a Associação atua no contraturno escolar e oferece oficinas de música, teatro, informática, artes, entre muitas outras atividades. Ao longo dos anos, as crianças da ‘Brinca’ como é apelidado o espaço, já cresceram, trouxeram seus filhos e voltaram ao espaço para atuar como brinquedistas para outras gerações.
“Existe uma transformação não só social, mas de autoestima com essas crianças, de contato com outras áreas que elas não poderiam ter contato, seja por uma questão financeira, seja cultural, seja de informação”, conta a coordenadora da Ludocriarte, Tainá Martins, de 30 anos. “Aqui elas vão entrar em contato com essas áreas, como artes, música, teatro, e às vezes elas vão ser melhor compreendidas. Isso gera uma sensação de pertencimento”, completa. Com foco principal na garantia ao brincar, o espaço é equipado com jogos de tabuleiro, tintas, tecidos, instrumentos e materiais, para que as crianças, guiadas pelos brinquedistas, usem a criatividade. “Temos uma banda, fazemos cortejos. Nossas atividades valorizam muito a cultura e o cerrado. Ano passado, conseguimos, inclusive, lançar um livro”, contou Tainá.
A Associação, porém, tem seus recursos por meio de editais do governo, o que não garante uma estabilidade financeira para manter o local. “É uma incerteza que dá um frio na barriga a cada semestre e a cada ano, assim. Fechou o edital, eu não sei o que vai ser ano que vem”, diz a coordenadora. “Então eu diria que o maior desafio da Brinca é ter esse espaço seguro, financeiro e longevo. Porque os editais podem parar, mas crianças não param de vir, a demanda não para”, completa.
Um Novo Sol Nascente
No Sol Nascente, a Associação Despertar Sabedoria transforma a comunidade e a vida das crianças, a partir do incentivo à leitura e educação de forma lúdica. “Aqui no Sol Nascente, as taxas de analfabetismo são muito grandes. Não temos um teatro aqui, não temos opção de lazer e cultura para essas crianças e adolescentes. O que fazemos, com muito esforço, é tentar mudar o futuro delas”, conta Margarida Minervino. A assistente social criou o projeto em 2009 e viu sua vida inteira ser construída ao redor do Despertar. “Fiz cursos de educação para crianças e adolescentes, me formei em uma faculdade que me possibilitasse trabalhar com isso que amo e criei minha filha dentro do projeto, que depois cursou pedagogia, por ter criado a paixão, também, por ensinar”, diz Margarida. Paloma Mel, 33, filha de Margarida, ajuda a mãe no projeto desde adolescente, oferecendo educação de forma lúdica a crianças, para que elas não desistam da escola. “Comemoramos cada aluno que se forma no ensino médio, cada um que consegue fazer faculdade, porque muitos têm que trabalhar para manter a família e não conseguem priorizar a educação superior. Ao longo dos anos vimos também o Sol Nascente ir crescendo e comemoramos cada pequena conquista da comunidade”, lembra Paloma, emocionada.
O Despertar recebe apoio do governo apenas com doação do valor de pecúnias, que são quantias em dinheiro pagas por indivíduos que cometem pequenos crimes e pagam o governo. Esse valor é destinado a projetos sociais, o Despertar Sabedoria é um deles. “Não é uma quantia que nos faz conseguir manter o lugar, então tentamos arrecadar doações, vender produtos, como pipoca doce, para conseguir ir fazendo melhorias no espaço, comprando mais livros. É um trabalho árduo e toda a equipe atua de forma voluntária”, explica Paloma.
O projeto atua de forma cíclica, e conta com o voluntariado dos próprios alunos. A partir dos 12 anos, quando a criança se torna adolescente, ele passa a auxiliar os menores, ajudando nos estudos. “Eles aprendem sobre responsabilidade, assinam um termo de voluntariado e sentem orgulho de serem quem pode ensinar e devolver esse conhecimento e atenção que foi passado dos mais velhos a eles”, conta a pedagoga. Segundo ela, após os 18 anos, quando se tornam adultos legalmente, muitos alunos voltam, para continuar atuando no projeto, como a estudante Joyce Kelly Silva, de 19 anos. “Quando entrei no Despertar, eu tinha 13 anos. Estava com depressão e o que me possibilitou melhorar foi, justamente, estar aqui e me abrir para as outras pessoas”, lembrou Joyce. Hoje, fazendo um curso técnico de Recursos Humanos, ela atua auxiliando os adolescentes. “Muitos me pedem ajuda com questões de tecnologia, me mandam mensagem. É um prazer poder ajudar eles como me ajudaram no passado”, completa a jovem.
Contatos
Associação Centro Social Santo Aníbal
Endereço: SRIA II (Polo de Moda) lote 02 – Guará
Contato: (61) 3301-1960
Site: https://www.santoanibal.org.br/
Instagram: @centrosocialsantoanibal
Brinquedoteca Comunitária Ludocriarte
Endereço: Q. 103 Casa 01 – St. Res. Oeste, São Sebastião
Contato: (61) 3339-1976
Site: https://ludocriarte.org/
Instagram: @ludocriarte
Associação Despertar Sabedoria
Endereço: Condomínio Gênesis quadra F lote 11, Sol Nascente
Contato: (61) 3461-5611
Site: @associacaodespertarsabedoria
Instagram: @associacaodespertarsabedoria
Por Por Brasília
Fonte Correio Braziliense
Foto: Bruna Pauxis